Dia internacional da mulher. Para comemorar a data, precisávamos entrevistar uma mulher muito especial. Uma mulher que fosse a cara do Muda Tudo. Guerreira, inspiradora e capaz de mostrar que, com determinação e esforço, é possível mudar tudo.

Bingo: Joana D’Arc Félix de Souza. Mulher, negra, brasileira, de origem humilde, PHD em Química em Harvard, uma das melhores universidades do mundo. Ganhadora de cerca de 60 prêmios nacionais e internacionais.

Dia Internacional da Mulher: Joana D'Arc Félix

Foto: Escola Agrícola da Franca

BIO

A nossa Joana D’Arc é a caçula de uma família de Franca, interior de São Paulo. Aprendeu a ler aos 4 anos, terminou o estudo médio aos 14 e aos 24 já tinha um doutorado. Tudo conseguido com muita dedicação.

Filha de empregada doméstica e de um profissional que trabalhava em um curtume (onde o couro cru é processado quimicamente para ser usado na indústria), Joana estudou dia e noite com apostilas emprestadas e conseguiu entrar para a Universidade de Campinas, a 300 km de Franca.

O dinheiro que tinha só dava para pagar uma refeição por dia. Passou fome até conseguir uma ajuda da Fundação de Amparo à Pesquisa (FAPESP), que deu a ela uma bolsa de R$ 300,00 para ajudar a se manter. Dos R$ 300,00, tirava R$ 100,00 para mandar para casa e ajudar os pais e os 3 irmãos. Quando teve um artigo publicado no Journal of American Chemical Society recebeu convite para fazer pós-doutorado nos Estados Unidos, em Harvard, onde trabalhou em um projeto de reaproveitamento de resíduos de curtumes, um grande problema em Franca.

Voltou ao Brasil logo que terminou o pós-doutorado porque, em um espaço de um mês, faleceram o pai e a irmã (que tinha quatro filhos). Para completar, a mãe ficou doente. Precisavam dela em Franca. E a pesquisa brasileira ganhou Joana D’Arc.

Dia Internacional da Mulher: Joana D'Arc Félix

Foto: Escola Agrícola de Franca

De volta ao Brasil

Três meses depois, Joana passou em um concurso para ser professora da Escola Técnica Professor Carmelino Corrêa Júnior, mais conhecida como Escola Agrícola de Franca. Desde que chegou ao Brasil, já conseguiu dar entrada em 15 patentes, todas relacionadas a projetos desenvolvidos com a ajuda de seus alunos.

Entre suas patentes, estão projetos como o da pele suína que, quando tratada, fica 100% compatível com a pele humana; um cimento ósseo que reconstitui fraturas humanas; um filtro feito a partir das escamas de peixes, além de cinco diferentes fertilizantes para aplicação na agricultura. Tudo isso feito com resíduos antes desperdiçados por curtumes. Como se não bastasse a utilidade das invenções de Joana D’Arc, os resíduos que agora são reutilizados diminuem a quantidade de dejetos da indústria coureira nos aterros de lixo, reduzindo a contaminação do solo e do lençol freático.

Franca gera 218 toneladas de resíduos por dia, só no setor de couro. O Brasil todo gera em torno de 3.500 toneladas por dia.

O resto, a gente te conta na entrevista:

MUDA TUDO: A história tem pelo menos duas Joana D’Arc, que têm muito em comum… mas também muitas diferenças… As duas de origem humilde. Uma francesa analfabeta, a outra, brasileira, PHD em Harvard. Duas mulheres que venceram tantas adversidades e viraram exemplos universais.

JOANA D’ARC FÉLIX DE SOUZA: A diferença está só no cedilha. Ela da França, e eu de Franca, interior de São Paulo (risos).

MT: Vamos voltar no tempo. Você começou a ler um pouco antes de completar 4 anos, aos 14 entrou para a universidade. Já fez teste de QI?

JD: Nunca passou pela minha cabeça fazer um teste. Só agora um monte de gente está me perguntando. Eu gosto de ler e me acho normal.

MT: Você conta que começou a ler enquanto sua mãe trabalhava e te dava o jornal Estado de São Paulo para você ficar quietinha e deixá-la fazer o serviço. Mas como você aprendeu, de fato, a ler?

JD: Ela me ensinou as palavras e eu tinha ganhado uma caixa de lápis de cor que eu usava para marcar as palavras conhecidas. E eu ficava decorando. Eu nunca aprendi o A, E, I, O, U. Eu aprendi as palavras direto. Depois quando eu chegava em casa eu contava as notícias para o meu pai (risos).

MT: Como você conseguiu chegar onde chegou? Você enfrentou todas as adversidades possíveis!

JD: Com essa determinação de ser alguém na vida, desde pequena. Quando eu estava na terceira série do ensino fundamental, eu mudei de escola para ficar mais perto de casa, uma escola mais elitizada, onde a diferença de classes sociais era bem clara: bastava olhar para o sapato da criança. Eu comecei aí a sofrer discriminação.

MT: Como era?

JD: A primeira vez que eu fui bem humilhada foi num dia em que eu sentei na hora do recreio e cruzei a perna. Os meninos viram um buraco no meu sapato, porque o plástico estava saindo para fora. O meu pai me dava um sapato por ano, comprado com o décimo terceiro salário, e ele tinha que durar o ano todo. Mas na época de chuva sempre furava. Então para chegar até o final do ano a gente colocava papelão e plástico… os meninos começaram a chutar o meu pé. Eu acho que esse foi um dos dias mais tristes da minha vida. Eu tinha uns 6 anos de idade, na terceira série. Foi naquele ano que eu comecei a perceber discriminação, preconceito. Mas meu pai dizia: “estuda porque amanhã você vai voltar para essa pessoa e mostrar que você é melhor do que ela, que você é capaz e vai vencer na vida”.

MT: Eu imagino que esse tenha sido apenas um episódio, pelo o que você conta.

JD: Sim. Outro episódio que foi bem determinante para eu ter vontade de crescer na vida foi em um intervalo, quando as crianças mexeram num material de obra que estava na escola e a diretora entrou na sala brava e disse para a sala toda: “pessoas do nível de vocês nunca serão nada na vida.” Aquilo mexeu demais comigo. Eu fui para casa e disse para o meu pai que não queria voltar para o colégio. Mas ele disse de novo: “você vai voltar e um dia vai mostrar para a diretora que você é melhor do que ela.” Ele sempre batia nessa tecla. Eu cresci ouvindo que eu ia vencer se eu estudasse.

MT: E os professores hoje tratam melhor os alunos?

JD: Sim, mas o que eu percebo é que o aluno hoje já vem muito desmotivado de dentro de casa. Existe muita “desestrutura” familiar. Para te dar um exemplo: os alunos negros não me procuravam para participar do projeto. Um dia eu pedi para conversar com eles, falei com cada um da importância de participar de projetos. Dos 25 com quem eu conversei apenas 1 disse sim. Um dia eu encontrei com 1 dos 24 que me disseram não e perguntei o que tinha acontecido. Ele me contou que o pai tinha dito que nunca tinha conseguido nada na vida e que não adiantava ele batalhar porque também nunca conseguiria nada. Eles não têm perspectiva, não veem uma luz lá na frente. A gente tenta resgatar essa esperança no aluno.

MT: Isso sem falar no distanciamento deles com o universo de vestibular, faculdade …

JD: É muito parecido com a minha história. Eu me interessei pela química por causa do trabalho do meu pai, mas eu acho que eu me apaixonei mais pelo jaleco branco (risos). Eu achava que ser química era trabalhar com couro e só descobri que tinha que fazer vestibular quando estava no terceiro ano do ensino médio. Os meus alunos também: eles acham que  universidade é algo muito distante, que é só para quem tem dinheiro. O que a gente tenta é reduzir esse abismo.

MT: De que maneira?

JD: Quando os alunos começam a participar de projetos de pesquisa, eles desenvolvem o espírito investigativo e começam a ler outras coisas fora da sala de aula, adquirem conhecimento e acabam conseguindo passar para a universidade. Uns 8 que fizeram projeto comigo estão cursando química.

MT: E essa motivação ajuda muito a reduzir a evasão escolar, não é?

JD: O aluno começa a enxergar como a educação é importante.

Dia Internacional da Mulher: Joana D'Arc Félix pesquisando com duas alunas

Foto: Escola Agrícola de Franca

MT: Você voltou para casa depois de terminar o pós-doutorado em Harvard, por causa de uma tragédia familiar. Imagino que você tinha outros planos.

JD: Hoje eu tenho certeza de que foi o melhor caminho que Deus traçou na minha vida, mas naquele momento eu fiquei muito chateada, pensando: “O que eu vou fazer em Franca?”

MT: E o que você fez?

JD: Cerca de dois meses depois que eu estava aqui eu fiz um concurso para a escola técnica e comecei a dar aula. Mas o que eu gosto de fazer é pesquisa, então eu conversei com o diretor e perguntei se poderia fazer um projeto de pesquisas no laboratório. A Fapesp então aprovou a bolsa de iniciação científica e eu comecei a convidar os alunos a participarem.

MT: Você fez algo revolucionário: levou a iniciação científica da universidade para a escola técnica.

JD: Na escola, o nível social é bem baixo e, como falei, a desmotivação é muito grande, existe muita evasão escolar. Nós estamos conseguindo reverter tudo isso, motivando e aumentando a autoestima dos alunos por meio da inclusão deles nos projetos de pesquisa.

MT: Quantos jovens trabalham diretamente com você?

JD: Eu já cheguei a ter 18, hoje tenho 12. É muito trabalho. Mas os outros professores também começaram a desenvolver projetos e isso foi muito importante.

MT: Daria para replicar esse modelo para outras escolas?

JD: Outras escolas e universidades estão agora nos procurando para saber como implantar a iniciação científica. E eu vou dando as dicas.

MT: Você poderia estar em qualquer universidade do mundo e está em uma escola técnica estadual em Franca. Sabemos que voltou para o Brasil por motivos familiares, mas e agora? Você não teria muito mais recursos em outro lugar?

JD: Recursos sim. Por exemplo, dependendo da análise que estamos fazendo em Franca, se for mais sofisticada, nós precisamos mandar para a USP, para a Unicamp… Mas a gente consegue fazer um excelente trabalho lá na escola.

MT: Mas convites não faltam, certo?

JD: Em 2014, quando eu ganhei o prêmio Kurt Politzer, o cônsul da Holanda me convidou para trabalhar na universidade de Amsterdam. Ele me sugeriu tirar uma licença de um ano para ver se eu gostava. No ano passado a minha mãe faleceu e agora eu estou pensando nessa possibilidade. Pensando.

MT: E como você consegue recursos na escola de Franca?

JD: Para compra de equipamentos é a Fundação de Amparo à Pesquisa (FAPESP) que contribui.

MT: E a iniciativa privada ajuda também?

JD: No fim do ano passado, aconteceu uma coisa superinteressante. Um empresário do Rio de Janeiro entrou em contato dizendo que queria ajudar. Ele foi a primeira iniciativa que nós tivemos por parte da indústria. Ele está financiando a reforma do nosso laboratório, patrocinando a nossa participação em feiras e doou dez bolsas de iniciação científica para os alunos.

MT: Que bacana! E a sociedade civil ajuda na escola: você conta com voluntários, doações …?

JD: Não. Isso a gente não recebe não.

MT: 15 projetos já foram patenteados por você. Essas invenções já estão no mercado?

JD: 5 fertilizantes sustentáveis feitos a partir de resíduos sólidos do setor coureiro-calçadista já estão sendo produzidos. Agora estamos fazendo a transferência para outras empresas, como a do cimento ósseo e da pele humana artificial a partir da pele suína. A produção em escala industrial desses dois deve começar no segundo semestre.

MT: Mudando agora para o tema mulher. Ser mulher dificultou a sua trajetória?

JD: Se eu tivesse partido para procurar emprego em uma indústria, eu acho que seria mais difícil, pelo fato de ser mulher e ser negra. Como eu fiquei na área acadêmica, fiz concurso para a escola, não foi tão complicado.

MT: Você tem um sonho?

JD: Tenho o grande desafio de brigar contra o câncer, que hoje é um mal que está atingindo uma enorme parte da nossa população. Nós estamos fazendo a pesquisa de um medicamento sem causar efeitos colaterais, que é o grande problema da quimioterapia. Isso vai ser uma imensa realização na minha vida.

MT: Então fala sobre uma realização que já aconteceu?

JD:  A pele humana artificial e o cimento ósseo que desenvolvemos.

MT: Uma meta?

JD: Continuar motivando e incentivando os jovens.

MT: Uma heroína?

JD: A própria Joana D’Arc, que foi uma guerreira. Meu pai era fã dela. Era para eu me chamar Maria Isabel, mas quando meu pai foi me registrar, colocou Joana D’Arc escondido, porque já tinha esse esquema na cabeça dele há muito tempo. A minha mãe ficou muito brava (risos).

MT: Joana D’Arc: o que muda tudo?

JD: É a educação que muda tudo. Independentemente da cor da pele, da classe social. É a única coisa que ninguém nos rouba. Se a gente traçar metas, a gente consegue. Muita gente se esconde dizendo que vai ser discriminada, humilhada,….  Mas a gente tem que enfiar a cara. “Não” a gente recebe todo dia. É traçar metas e arregaçar as mangas. Meu pai sempre bateu na tecla da educação: “Estuda que você vai vencer.”

Parece ser que a premonição do pai de Joana se realizou. Sua filha é uma verdadeira heroína, uma guerreira incansável. Um exemplo a ser seguido. Uma mulher maravilha.

Dia Internacional da Mulher: Joana D'Arc Félix

Foto: Escola Agrícola de Franca

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