Transformar o luto em luta não é nada fácil. E quem consegue isso, merece o nosso respeito. É uma prova do potencial de superação e de transformação que temos dentro da nós.

O engenheiro Fernando Diniz perdeu o filho Fabrício, de 20 anos, em um acidente de trânsito na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. A partir da tragédia, se tornou um importante ativista por um trânsito mais seguro. O acidente aconteceu em março de 2003 e, segundo Fernando, o motorista teve prisão preventiva decretada, por dirigir acima da velocidade permitida sob uso de substância psicoativa, e está foragido até hoje.

Entrevistamos Fernando Diniz no aniversário de 10 anos da Lei Seca, que ele ajudou a criar com o deputado federal Hugo Leal. De lá para cá, foram feitas 21 mil blitzes somente no estado do Rio de Janeiro, 2,9 milhões de abordagens e 187.000 motoristas flagrados com sinais de consumo de álcool.

Eu transformei meu luto em luta me degladiando contra aquilo que tirou o meu bem mais precioso: o meu filho. Mas eu entendo perfeitamente quem permanece em reclusão. O que me deixa triste é, num país onde temos cerca de 60.000 mortes por ano em acidentes de trânsito, termos tão poucas entidades e pessoas, deliberadamente, militando por um trânsito menos hostil.

Muda Tudo: Você criou a organização Trânsito Amigo e vem fazendo muita diferença com sua ações.

Fernando Diniz: Muito pouco tempo depois da morte do meu filho, minha mulher, minha filha e eu, resolvemos fazer um movimento que nós chamamos de Prosseguir é preciso. Buscamos na mídia outras famílias que passaram pela mesma perda e fizemos um grupo de mútua ajuda. Eu passava o dia todo trocando e-mails e telefonemas com gente de todo o Brasil, para dizer: “Você não está sozinho.” Eu dizia: “Formem suas alianças, formem grupos, não somem, multipliquem suas ações.”

Muda Tudo: E foi o que aconteceu? Pelo menos sua ações se multiplicaram.

Fernando Diniz: Eu fui dezenas, centenas de vezes à Brasília, em audiências públicas, à Assembléia Legislativa do Rio, ao Supremo, viajei o mundo através da OMS (Organização Mundial da Saúde), palestrei no parlamento canadense, em Moscou duas vezes, na Índia, no senado americano em Washigton…

Depois do acidente do meu filho, eu precisava entender a perda dele. E comecei a descobrir que o trânsito era definido como um dos ambientes mais democráticos do mundo, por onde circulam pessoas de todas as raças, credos, idades … e eu perguntava: “Que democracia é essa que mata de forma indiscriminada?”

Muda Tudo: Você tem instituição mantenedora?

Fernando Diniz: Não. A Trânsito Amigo sou em mesmo: Fernando Diniz. Mas essas andanças pelo mundo foram feitas pela Organização Mundial da Saúde. Uma vez me convidaram para um Congresso Internacional de Ortopedia, no Rio, cerca de dois meses depois do acidente do meu filho, e eu conheci um médico do sultanato de Omã. Houve um problema de tradução simultânea e ele me disse: eu não entendi o seu discurso, mas pelo que vi da sua emoção, pelas pessoas interrompendo suas palavras com palmas e chorando, eu te digo algo: Você é o cara que eu preciso. Você viria ao parlamento canadense apresentar a sua palestra? E foi aí que eu comecei uma trajetória de 10 anos levando essas palavras sobre cidadania no trânsito ao mundo todo.

Muda Tudo: A Lei Seca completou recentemente 10 anos. Como foi a sua participação na criação da lei 11.705?

Fernando Diniz: Eu ia duas, três vezes por semana depois do meu trabalho para os corredores do Detran, no centro do Rio. Eu insisti durante muito tempo para falar com o então presidente do Detran do Rio, deputado federal Hugo Leal, e hoje somos amigos. Juntos nós fizemos a concepção da Lei Seca e eu tenho muito orgulho disso. Eu acompanhei toda a tramitação dessa lei no Congresso. O modelo fluminense tem, inclusive, a rubrica da Trânsito Amigo.

Muda Tudo: Porque dá tão certo a Lei Seca no Rio? Não há relatos de corrupção, por exemplo.

Fernando Diniz: Eu não queria esse nome, porque Lei Seca nos Estados Unidos proibia a fabricação, a comercialização e o consumo e aqui só proíbe dirigir depois de beber. Eu queria o nome Tolerância Zero: Lei da Vida, para tirar o motorista alcoolizado das vias urbanas. O sucesso da Lei Seca no Rio de Janeiro se dá pelo fato de ser uma operação conjunta: Detran, Cet Rio, Guarda Municipal, Polícia Militar, Polícia Civil e, fora do âmbito da cidade, a Polícia Rodoviária Federal. O grande sucesso é ser uma operação conjunta. É impossível subornar uma operação com 40 pessoas. Até hoje não existe um registro de um suborno na Operação Lei Seca no Rio.

Muda Tudo: Você chegou a participar fisicamente das operações?

Fernando Diniz: Nos primeiros dias eu participava na madrugada, eu tinha fitinhas da Trânsito Amigo que diziam: “Um sopro pela vida”.

Muda Tudo: Deu certo mesmo?

Fernando Diniz: Nós chegamos a ter mais de 14 equipes no Rio, mas hoje, se não me engano, temos somente 6 ou 7.

Muda Tudo: A legislação existe, mas não existe controle suficiente, é isso?

Fernando Diniz: Isso.

Muda Tudo: E só funciona mesmo com tolerância zero? Nos Estados Unidos, por exemplo, você só é parado por uma autoridade se demostrar algum sinal de descontrole.

Fernando Diniz: Quando a lei foi sancionada pelo ex-presidente Lula, em junho de 2008, o Código de Trânsito brasileiro aceitava uma tolerância de 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue, o que equivalia a dois chopes, mas nós não tínhamos como aferir isso. E então a lei foi revista para se tornar tolerância zero.

A lei não diz que você não pode beber. Você pode virar do avesso, mas não pode beber e dirigir.

Muda Tudo: Vamos falar sobre cinto de segurança, também obrigatório no Código de Trânsito brasileiro, no banco da frente e no banco de trás.

Fernando Diniz: É muito importante. Air bag diminuiu o ferimento, mas cinto de segurança é que muda tudo, é o que evita mortes. Eu acredito que se o meu filho e as duas amigas estivessem com cinto eles estariam até sorrindo e dizendo que tudo não tinha passado de um grande susto. Mas, infelizmente, não foi assim que as coisas aconteceram. (nota: os dois amigos nos bancos dianteiros sobreviveram ao acidente)

RJ – RIO-CLARO – 28/07/2016 – Revezamento da Tocha Olímpica para os Jogos Rio 2016. Foto: Rio2016/Andre Luiz Mello

Muda Tudo: O exame toxicológico também é muito importante porque o problema não é só o álcool.

Fernando Diniz: Desde 2015 existe a Lei 13.103, conhecida como Lei do Caminhoneiro. O teste é feito com um fio de cabelo ou da unha e atesta com segurança se substâncias psicoativas foram usadas nos últimos 90 dias. O que a gente quer é trafegar em um trânsito livre de álcool e de drogas. Os motoristas profissionais das categorias C, D e E,  representam apenas 4% da frota nacional, mas são responsáveis por 50% dos óbitos no trânsito no Brasil, nas estradas e vias urbanas.

Muda Tudo:  A Lei Seca foi a sua grande vitória nessa sua luta?

Fernando Diniz: Além da Lei Seca eu trouxe para o Brasil a celebração do Dia Mundial em Memória das Vítimas de Trânsito, sempre o terceiro domingo de novembro. E hoje eu sou o representante do Rio de Janeiro do Maio Amarelo (nota: movimento para chamar atenção para o alto índice de acidentes no trânsito em todo o mundo)

Fernando Diniz: 175 países assinaram o Pacto de Moscou, em 2009, determinando reduzir em uma década (de maio de 2011 a maio de 2021) a mortalidade no trânsito em 50%. A Organização Mundial da Saúde deu um prazo para que os países passassem a tomar suas ações, em 2011. Mas no Brasil nada foi feito nesse pontapé inicial. Essa foi a primeira briga grande que eu tive em Brasília.

Muda Tudo: Qual a pena para acidente de trânsito que provoca morte, sem intenção de matar?

Fernando Diniz: O Código Brasileiro de Trânsito caracteriza o acidente de trânsito com vítima fatal como homicídio culposo, com pena de 5 meses a 4 anos. Mas o Código Penal determina que, penas até 4 anos, o juiz pode reverter as penas em prestação de serviço à comunidade. É como se o crime por morte no trânsito fosse de menor potencial e a pessoa paga cesta básica. Isso é o maior desrespeito que existe. A vida dos nossos filhos é comparada a alguns grãos de arroz e feijão. Isso está sendo revisado e deve mudar. Ainda existe uma brecha para que as pessoas não cumpram a pena em regime fechado mas eu e outras pessoas vamos continuar lutando para fazer com que esse espaço chamado trânsito se torne menos violento, menos hostil, mais humano.

Muda Tudo: Como a sociedade pode te ajudar nessa luta?

Fenando Diniz: A sociedade pode fazer, todo santo dia, a sua parte no trânsito, antes que se torne a próxima vitima. E essa parte é cumprir as leis de trânsito. E isso não é tão complicado. Os países mais desenvolvidos do mundo cresceram nessa condição, de respeito, de educação. 

Todo motorista é pedestre em algum momento. Esse ambiente do trânsito é um respeito mútuo, é uma troca. 

Muda Tudo: Estamos evoluindo?

Fernando Diniz: Não a passos largos. Eu diria que no aspecto trânsito nós estamos nadando contra a correnteza, em um processo muito desigual.

Muda Tudo: Se você tivesse que mudar mais um ponto no Código de Trânsito Brasileiro, qual seria esse ponto?

Fernando Diniz: Seriam muitos … Mas resumindo? Igualdade para todos. A Constituição diz que todo brasileiro ao completar 18 anos tem direito a tirar CNH, carteira de habilitação. Mas sentar em um volante não é direito, é conquista.

Muda Tudo: Para terminar, Fernando, o que muda tudo?

Fernando Diniz: Eu estou com 71 anos e meio. E vou continuar lutando quantos dias mais Deus me permitir. Mas eu queria dizer para todos que vão ler esta matéria: só Deus sabe quantas vezes eu falei na morte do meu filho Fabrício. Eu não queria isso para mais ninguém. Se eu tivesse inimigos, desejaria qualquer coisa, menos a dor da perda de um filho. Mas a morte não é a pior coisa dessa vida. A pior coisa é aquilo que morre dentro da gente enquanto nós vivemos. Morrer é natural, mas morrer no trânsito, de forma evitável, isso não é justo.

“O que muda tudo é respeito, cidadania, responsabilidade, educação, civilidade.”

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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