O aniversário de 450 anos do Rio de Janeiro foi o ponto de partida para a exposição Campos de Altitude. A data serviu como inspiração para a fotógrafa Kitty Paranaguá sair em busca da imagem que melhor representasse o Rio de hoje. Mas o que inicialmente seria um trabalho focado apenas em paisagem, acabou transformando-se numa mágica e instigante fusão entre os moradores dos morros e a beleza natural da cidade. O resultado são imagens surpreendentes, que nos fazem enxergar a vida dessas pessoas sob um outro ponto de vista e a vista da cidade sob um ângulo inimaginável.
“Quando eu comecei a subir os morros pensando em encontrar a vista que a cidade tem hoje, surgiu essa ideia de juntar algumas coisas, o que acabou virando um tripé e a base do meu trabalho. Qual é a paisagem da cidade hoje, quem mora nessa paisagem e como essas pessoas moram? Fiquei pensando de que forma eu poderia juntar essas três informações e me lembrei do trabalho do Abelardo Morel.” O fotógrafo cubano usa a câmera escura para levar a paisagem de fora pra dentro dos espaços. “A partir daí eu mapeei a cidade, os morros importantes, como seria o acesso a eles, quais as pessoas com as quais eu teria que falar. Em alguns lugares me indicaram os moradores, em outros os contatos foram casuais. Eu subia o morro, sempre sozinha, com meu equipamento, e fotografava primeiro a vista do lugar. Aí voltava com o projetor numa segunda etapa para fotografar o interior da casa.”
Kitty conta que as pessoas sempre se surpreendiam ao ver sua vista refletida dentro da própria casa. “A gente conversava, escolhia um lugar, e eu projetava a imagem. Era sempre uma surpresa. As pessoas foram muito receptivas. Abriam suas casas, ofereciam um bolinho… Essa generosidade e abertura que você encontra nas comunidades é incrível.”
Durante mais de um ano Kitty manteve a rotina de subir os morros do Complexo do Alemão, Vidigal, Pavão Pavãozinho, Providência, Tavares Bastos, Cantagalo, Rocinha, Chapéu Mangueira, registrando a vista e a vida de cerca de 20 moradores entre crianças e idosos. Foram muitas imagens e histórias que a fotógrafa faz questão de compartilhar.
“Conheci a Adriana por acaso. Soube que ia ter uma feira de livros no Chapéu Mangueira, peguei uma van, subi o morro e comecei a fotografar. Vi um grafite de uma mulher negra com um pano na cabeça maravilhoso e de repente eu vejo uma moça linda, com pano na cabeça, igual ao desenho. Me apresentei, perguntei se podia fazer uma foto dela, expliquei todo o processo do trabalho, ela concordou e depois de terminado o ensaio com ela perguntei… Adriana você nem me conhecia e abriu as portas da sua casa, por que? Porque eu queria muito ter um retrato bacana meu e achei que você podia fazer (risos).”
Campos de Altitude ainda contou com uma terceira etapa. “Eu voltei depois pra entregar as fotos pra eles e gravar uma entrevista. Então eu tenho também um documento falado deles, um relato sobre a vida em geral. Nada de vítimas, mas declarações de pessoas que valorizam a sua vida e que querem compartilhar suas histórias. O Tomás, da Babilônia ficou super feliz de me contar que ele ajudou a construir a escola local comandando um grupo de bêbados do morro. Os pais dos alunos não quiseram se envolver e a escola está lá funcionando. A Mariluce, do Alemão, é uma pessoa que tem um trabalho social no morro, que colocou as crianças para pintar caixinhas e vende o trabalho deles fazendo a renda reverter para os meninos.”
Os depoimentos fazem parte da exposição que está em cartaz no Centro Cultural Justiça Federal no Rio de Janeiro. “O que eu mais gosto desse trabalho é poder trazer um pouco dessa nossa cidade que é muito partida. Quem sobe o morro no Rio de Janeiro são os turistas estrangeiros, o carioca nem pensar! O turista brasileiro ainda vai, mas não tanto quanto o estrangeiro que chega aqui muito curioso. Para o carioca o morro é uma coisa quase proibida pra ele. Então a possibilidade de trazer o morro pra baixo e das pessoas de lá serem vistas aqui é muito forte.”
Fotógrafa de sucesso no universo da decoração e arquitetura, Kitty também chama a atenção para a estética rica dos elementos coloridos das casas nos morros. “Fotografei durante anos casas para arquitetos e revistas de decoração, mas nunca tem espaço para publicar a casa de alguém que mora no morro. Levei uma amiga que foi dona de uma super loja de iluminação e ela ficou encantada, ‘Kitty que móveis incríveis, as pessoas moram super legal!’ A gente tá acostumado com o padrão que o arquiteto impõe, que a casa tem de ser clean e, de repente, tem muita cor. Isso foi uma surpresa bacana, as paredes coloridas das casas…As pessoas gostam de cor porque a gente vive num país super tropical.”
Campos de Altitude fica em cartaz no CCJF até sábado, 12 de julho. Em agosto viaja para São Paulo, onde será exibida na Galeria Janaína Torres, e em outubro voará para o outro lado do mundo. A mostra foi escolhida pelo FotoRio para fazer parte do Festival Internacional de Fotografia de Pequim, na China. Adriana, Roque, Salete, Simone, D.Joana, Gilson, Tom, Miguel, Noemi, Vicente e os demais personagens do ensaio serão vistos com outros olhos. Os moradores dos morros cariocas, donos das mais belas vistas da Cidade Maravilhosa, se transformaram na paisagem que melhor define a essência do Rio de Janeiro. Uma mistura de generosidade, beleza, cores e histórias inspiradoras. “A fotografia expande a relação com o mundo. Ela possibilita você ter acesso a coisas que não teria, a encontros maravilhosos como esses. Mas a maior realização é receber uma mensagem como a do Gilson depois que contei sobre a escolha da mostra para o festival na China. ‘Sabe aquele momento que você vira obra de arte!? Tá aí! Fluiu! Obrigado, Kitty Paranaguá.”
Kitty é quem agradece, tanto que decidiu dar a eles, os artistas da mostra, um percentual das obras vendidas. Um gesto que valoriza ainda mais “Campos de Altitude.”