Um projeto de arte para despertar o melhor nos detentos. Foi com essa ideia que nasceu há 3 anos o Libertarte, na Penitenciária Lemos Brito, em Salvador. Por meio de oficinas de mosaicos, o artista Eliezer Nobre idealizador do projeto, promove a ressocialização de detentos. “Pensei na possibilidade de levar a arte para nutrir no interno o processo de colar pedrinhas, mosaicos, como se ele estivesse colando sua vida, seus fragmentos e ao mesmo tempo lhe gerar um ofício.” Cearense radicado em Salvador, Eliezer é arquiteto de formação, artista plástico autodidata e reconhecido como um dos maiores mosaicistas do Brasil.
MT – Como você começou o Libertarte?
EN – Eu recebi um convite do diretor do presídio. Na ocasião era o professor Everaldo Carvalho, um sociólogo que já havia sido agente penitenciário. Ele percebia que as oficinas que têm dentro do cárcere não tratavam o lado humano dos detentos. Só existiam oficinas de pré-moldados, confecção de esquadrias, estopas… Então ele pensou, “Vou convidar um artista pra cá.” Um amigo meu que tinha uma oficina lá me indicou.
MT – E você aceitou de primeira?
EN – É uma coisa bem delicada, entrar no sistema penal, mas a princípio pensei, não vou dizer não, vou lá ver. Quando cheguei e vi o cárcere cinza, sombrio, fiquei pensando, como é que eu vou trazer beleza, poesia, estética, como vou transformar isso aqui? O meu trabalho de maior reconhecimento são os mosaicos. Eu faço grandes painéis. O maior mosaico da América Latina, que é o do edifício Torre Barcelona, em Salvador, (são 1.200 metros quadrados) eu montei com 30 pessoas. Naquele momento, antes da crise, eu tinha 10 funcionários fixos. Tinham umas vantagens também com relação à minha sobrevivência empresarial. Eu somei tudo e vi – eu posso fazer um trabalho social, posso ajudar aquelas pessoas e ainda ter uma contrapartida financeira.
MT – Foi um ganha-ganha então…
EN – Sim, o interno a cada 3 dias trabalhado, tem um dia de remissão de pena, e isso é muito importante para eles. E parte do dinheiro que eles ganham pelo trabalho pode ser usado enquanto eles estão na prisão e a outra parte vira uma poupança de pecúlio para quando eles saírem. Avaliando esses aspectos vi que eu poderia capacitar pessoas e ainda gerar renda. A renda são dois terços do salário mínimo sem encargos trabalhistas. Se a gente for analisar a questão trabalhista no Brasil é muito dura. A pessoa está ali trabalhando e muitas vezes não corresponde e você quer tirar aquela pessoa mas é difícil porque ela já está trabalhando dois, três anos… E no cárcere você tem essa vantagem também. Aquela pessoa não se adequou, não está rendendo por qualquer motivo que seja, você pode dizer: “com licença…”
MT – E como foi o início desta história lá dentro?
EN – No início eu tive que ter lá 3 pessoas orientando, capacitando comigo. A primeira turma era de pessoas mais idosas. Eu brincava dizendo que minha turma de mosaico era geriátrica.
MT – Eram detentos que estavam cumprindo pena há mais tempo?
EN – Sim, esses já estavam presos há mais tempo. Existe uma qualificação de acordo com os crimes e as penas cumpridas. Tem os crimes mais violentos, as penas que ainda estão em 30, 40%, e as que faltam 10% para serem cumpridas. Então na minha oficina eu trabalharia com o pessoal da farda azul – que são os detentos que já cumpriram a maior parte da pena e tiveram bom comportamento. São esses que ficam soltos dentro da instituição. Os mais violentos são quase sempre os mais jovens e ficam em outras alas.
MT – E como é o espaço, o ateliê de vocês?
EN – Eu escolhi um espaço físico que achei muito bacana, mas deu trabalho: tive que transformar a parte elétrica, coloquei um telhado, um piso todo colorido… As grades são barras bem largas, coloridas também, e os portões do ateliê ficam abertos. Consegui criar um lugar que não é sombrio, tem música, café, suco, água gelada, livros…Passa a mensagem: “você pode ter tudo isso se você se mantiver nesse caminho que vai te auto dignificar.” E comecei a criar um envolvimento uma empatia com essas pessoas, que num primeiro momento eram resistentes ao toque, a um abraço…
MT – Já surgiu entre eles algum que tenha o dom da arte? Algum artista nato?
EN – Sim, tem vários, e eles dizem que quando saírem não vão conseguir fazer outra coisa senão trabalhar com isso.
MT – E as oficinas, como tem sido o processo de criação?
EN – Fomos criando primeiro pequenos objetos, caixinhas, porta-joias, porta-retratos, depois quadros. Chegamos a ter um stand no Salvador Shopping. O shopping não nos cobrava. Fui lá com o superintendente da SEAP (Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização do Estado) e eles viram que era um projeto sério. Os três primeiros meses tivemos um custo muito alto, a gente tinha 3 vendedoras, um custo mensal de 5 mil reais. Mas mesmo assim o projeto não só cobria os custos como também o reinvestimento, salário da equipe, compra de novos materiais. E aí veio a crise… Os meses seguintes foram decaindo e quando olhei em volta uma meia dúzia de lojas estavam fechando. Não era um problema do Libertarte, era generalizado. Então resolvi retrair. Fizemos uma lojinha dentro do próprio cárcere porque lá tem a visitação dos parentes e tem os próprios detentos. E aí conseguimos construir também pequenos objetos com valores menores. Lá tem também a visitação de promotores, advogados, juízes, defensores públicos…
MT – E agora, como vocês estão fazendo para gerar uma receita?
EN – Vínhamos mantendo o projeto com muita dificuldade. Aí a Dra. Fabíola, defensora pública, fez uma exposição no Tribunal de Justiça, e depois veio o promotor Dr. Edmundo Reis e levou o projeto para o Ministério Público. A gente espera agora contar com o apoio de três secretarias. O projeto deverá não só ser autossustentável, como também possibilitar o atendimento a um número maior de internos. Em vez de 10, 30, 40, 50… 100! Porque a gente pode atender a Salvador e também o interior do estado.
MT – Existe algum plano para levar novamente o projeto Libertarte para além da penitenciária?
EN – Eu tenho o sonho de criar um roteiro turístico e artístico com mosaicos em Salvador, a exemplo de Barcelona com as obras de Gaudí. O governo da Bahia está entregando agora as estações de metrô. A gente pode fazer painéis nessas estações, em praças públicas, equipamentos urbanos, bancos, jardineiras, toda parte de sinalização. A perenidade do mosaico é muito grande. É um produto durável e, ao mesmo tempo, é um revestimento. Você fazer uma passarela, fontes luminosas… Você pode inclusive criar referências históricas, você tem um ponto de ônibus que pode ter o desenho de um artista que morou naquela região. No Rio Vermelho você tem Jorge Amado, na Federação tem a mãe Menininha do Gantois, em Itapuã, Vinicius de Moraes…
MT – Nossa, é verdade… E como os internos trabalhariam nessas obras?
EN – A gente tem os apenados que estão no sistema semi-aberto. Ou seja, parte da obra seria confeccionada dentro do cárcere e os que podem sair para trabalhar e voltar no final do dia poderiam fazer as instalações. Existe uma técnica do mosaico que é a da aplicação indireta, você confecciona o trabalho em uma tela e instala no lugar.
MT – Você mencionou em algum momento que muitos detentos dizem que não querem fazer outra coisa, senão trabalhar com mosaico, quando conseguirem a liberdade. Seria uma forma de dar continuidade a esse trabalho?
EN – Sim, a gente poderia criar um pólo, um centro artístico que o próprio interno poderia estar trabalhando, vendendo seu produto. Teria a gestão de algum órgão que pudesse fiscalizar o direcionamento dessa verba. E existe o mosaico na escala urbana e numa escala de consumo de objetos. Tem várias lojas como a ETNA e Tok & Stok que poderiam absorver uma quantidade de objetos para decoração mesmo. Não tem o Museu Mauá? Por que não ter um com produtos feitos por internos?
MT – Eliezer, o que essa experiência de trabalhar com a ressocialização de detentos mudou a sua forma de ver o sistema penal?
EN – A gente tem de ter outro olhar para o detento, o interno. Todo ser humano tem a capacidade de se regenerar e esse resgate depende da aceitação da sociedade. A violência está ligada às políticas sociais públicas. Os meninos que estão nascendo aí e estão à deriva, são os novos criminosos. É a tal história, ao invés de abrirmos mais presídios, temos de abrir mais escolas. E os presos que já estão aí têm que servir como uma referência de mudança. Pode se buscar algo que seja enriquecedor para a vida e que não passe pelo crime. A pessoa quando faz uma obra de arte sente dignidade, sua auto-estima é levada a um patamar que a gente não tem noção. Este projeto tem essa envergadura.
MT – Vc vai fazer uma exposição agora no final do ano?
EN – Sim! Nobreza, por Eliezer Nobre. Ela vai abranger todas as minhas diversas formas de expressão. O Libertaste vai estar lá com obras dos internos com curadoria de Márcio Carneiro. Tem ainda o Studio 3, um projeto novo meu que traz uma série de esculturas e ainda obras de mosaicos, pinturas, esculturas. São quase 20 anos de produção, mas para mim o Libertarte é o grande destaque de Nobreza.
Para saber mais sobre Eliezer Nobre: www.eliezernobre.com.br
Veja também – https://mudatudo.com.br/atitudes/presos-cuidam-de-animais-vitimas-de-maus-tratos-em-prisao/