A América Latina é a região com mais água doce no planeta, sendo que o Brasil tem 53% dos recursos hídricos latino-americanos e 12% do total mundial. Sendo assim, a maior reserva de água da Terra é brasileira.

Foto: Pixabay

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Por causa dessa abundância, muitas pessoas pensam: por que economizar, se temos tanta água?

“Quando olhamos os números, parece que o Brasil ocupa uma posição muito confortável em relação a recursos hídricos, mas não é bem assim. A água não está disponível de maneira proporcional de acordo com a concentração da população brasileira. 70% da nossa água está na região Amazônica, longe do alcance da população. Fora isso, uma boa parte não é própria para o consumo.

Quem diz isso é uma das maiores autoridades em água do país, o biólogo Samuel Barreto, gerente nacional de água da ONG The Nature Conservancy. A TNC é a maior organização não governamental do mundo em temas ambientais, atuando em 72 países, com mais de 3.000 funcionários, sendo cerca de 400 cientistas.

O biólogo Samuel Barreto (TNC)

O biólogo Samuel Barreto (TNC)

Entrevistamos Samuel Barreto para marcar o dia 22 de março, que é o Dia Internacional da Água, criado em 1993, pela ONU, para chamar atenção para a extrema importância desse recurso natural.

Formado pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), com MBA em Sustentabilidade pela FIA – da Faculdade de Economia e de Administração da Universidade de São Paulo (USP), Samuel Barreto conversou com o Muda Tudo e explicou que é preciso mudar o nosso olhar em relação à água.

Samuel Barreto: A água que consumimos não vem da torneira. A água vem de nascentes que há muito tempo vem sofrendo com o crescimento desordenado de cidades, com a poluição, com o desmatamento, com um consumo cada vez maior e com muito desperdício em todos os setores. Para se ter uma ideia, de toda a água potável produzida no Brasil, existe uma perda de algo em torno de 37%, sendo que em algumas regiões esse número sobe para 70%, como alguns lugares do norte do país. Uma perda de 40% é inaceitável, imagina 70%! A água se perde principalmente por vazamento ou por roubo, o chamado “gato”. Na região metropolitana de São Paulo perde-se, em média, 31%. Desse total, 11% é por roubo.

É fundamental combater esse tipo de perda e desperdício. Afinal, cada gota conta.

Foto: Pixabay

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Muda Tudo: Quantas pessoas no Brasil não têm acesso à água potável?

Samuel Barreto: Segundo o Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento (SNIS), dados de 2016, cerca de 35 milhões de pessoas, ou seja, 17% da população. Em relação ao saneamento, esse número é ainda maior. Metade dos brasileiros, ou seja, mais de 100 milhões de pessoas,  não têm acesso à coleta e ao tratamento de esgoto, o que gera uma consequência muito ruim para a saúde da população. Pessoas morrem por causa das chamadas doenças de veiculação hídrica. Além disso, há um custo é quatro vezes maior do que se houvesse investimento em prevenção, segundo a Organização Mundial da Saúde. Para cada dólar que você deixa de investir em saneamento você gasta quatro vezes mais no sistema de saúde. Sem falar no custo da recuperação dos rios, como o rio Tietê, em São Paulo.

Muda Tudo: O Rio Tietê é um rio morto. Dá para recuperar?

Samuel Barreto: No Brasil não tem pena de morte para pessoas, mas tem para rios. As pessoas e os governos permitem que isso aconteça. O Tietê, na região metropolitana, não tem quase nenhuma finalidade. O Rio Jundiaí era de classe 4, como o Tietê, e passou para classe 3. Comparando com um time de futebol, seria um rio que melhorou suas condições e passou para uma categoria superior. Então dá para recuperar rios sim. Precisamos dessa força tarefa estabelecendo prioridades inclusive orçamento para tal o que vai resultar em maior segurança hídrica, qualidade de vida para a população e fomento ao desenvolvimento.

Foto: website The Nature Conservancy

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Muda Tudo: E como se pode recuperar um rio?

Samuel Barreto: Mudando o olhar, tratando a água como recurso fundamental para a vida. E mudando o que eu chamo de sistema romano, em que a gente capta a água, reserva, capta, transporta, usa e descarta. Tem que ter um modelo mais inteligente. É preciso recuperar as fontes atuais, ampliar a oferta, reduzir perdas, gerar eficiência na demanda e para isso é preciso ter governança e plataformas coletivas de ação com políticas, diretrizes, instrumentos de gestão e investimentos de forma perene e não como “efeito soluço”, que aparece de tempos em tempos.

Muda Tudo: Atuar em conjunto?

Samuel Barreto: É preciso que exista um intenso trabalho de cooperação entre ONGs, empresas, governos e cidadãos. Sozinho ninguém vai chegar lá, porque o tamanho do desafio é grande demais. Governos sozinhos não vão dar conta, nem empresas sozinhas. As plataformas coletivas de ação são fundamentais para termos sucesso. É preciso ter planejamento, governança, planos duradouros que ultrapassam mandatos políticos de uma eleição e também uma nova atitude da população, que entenda que as ferramentas de gestão são fundamentais para a sua qualidade de vida.

Muda Tudo: Mudar o olhar e mudar a atitude.

Samuel Barreto:  A gente não pode seguir nesse caminho de aumento de consumo, de aumento de demanda pelo crescimento populacional, o cenário é catastrófico. É como pilotar um avião em direção a uma montanha.

A boa noticia é que temos tempo para mudar essa rota, mas é preciso agir muito rápido, dentro de uma nova cultura da água.

Samuel Barreto trabalhando no campo

Samuel Barreto trabalhando no campo

Muda Tudo: Dá um exemplo de cooperação que vem dando certo, dessas plataformas coletivas de ação?

Samuel: A Bacia do PCJ (formada pelos rios Capivari e Jundiaí, onde ficam as principais represas do Sistema Cantareira, cujo sistema tem sido a principal fonte de abastecimento da população do Estado de São Paulo), onde existem investimentos contínuos. A questão do saneamento na Bacia do PCJ não está resolvida, mas está encaminhada. Existe a agenda de conservação de mananciais, com base em soluções naturais, transformando o ciclo vicioso em virtuoso.

Outro exemplo é Extrema, em Minas Gerais, onde há o projeto conservador de água. Extrema se tornou um dos municípios com melhor qualidade de vida do país, aliando desenvolvimento (com atração de empresas) à conservação, melhorando a vida das pessoas no campo.

Juntar conservação e desenvolvimento é plenamente possível.

Temos também o caso é o da Lagoa de Araruama, no estado do Rio. Por meio da ação conjunta de diversos atores, conseguimos a despoluição da lagoa com a volta da vida aquática, da atividade pesqueira, do turismo e da atividade econômica, que aumentou em torno de 40% no meado dessa década.

Foto: website The Nature Conservancy

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Muda Tudo: Em 2015, a TNC lançou o programa Coalizão Cidades pela Água, um projeto para garantir o abastecimento de água atual e futuro em 12 regiões metropolitanas brasileiras, incluindo Rio de Janeiro, São Paulo, Distrito Federal, Curitiba, Espírito Santo e Belo Horizonte. Vamos falar um pouco sobre esse desafio?

Samuel Barreto: Esse é um plano para restaurar e recuperar áreas estratégicas para o abastecimento de água para mais de 40 milhões de pessoas. A prioridade é atrair sócios do setor privado para atuar nessas regiões, mostrando que isso é essencial para os seus negócios e para os seus consumidores. E o foco desse plano é fazer isso com soluções baseadas na natureza. Essa é uma iniciativa que integra a Aliança de Fundos de Água da América Latina que além da TNC, tem o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BIG, a Fundação Femsa e o Global Environmental Facility – GEF. Essa por sua vez integra uma Rede Global de Fundos de Água. Existem 34 Fundos de Água no mundo sendo 23 deles na América Latina.

Muda Tudo: Que soluções são essas?

Samuel Barreto: A conservação, por exemplo. Quando a gente perde floresta, o solo fica exposto e fica mais vulnerável à erosão, enchentes … Então a primeira meta é não perder floresta. Depois é recuperar áreas degradadas. Como não dá para recuperar tudo, é muito importante identificar áreas prioritárias e atuar. Esse trabalho de plantio não só recupera água, mas atua direto no clima, por causa da absorção de carbono, …

São soluções que permitem recuperar aquilo que a natureza faz de graça.

Foto: Facebook TNC

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Muda Tudo: E tem dado certo?

Samuel Barreto: Uma das provas de que o programa de restauração e conservação florestal está dando certo é o aumento do número de aves na região do Rio Guandu, no Rio de Janeiro, o que indica a melhoria da qualidade ambiental de um ecossistema. A Bacia é responsável por cerca de 80% do abastecimento hídrico da região metropolitana do Rio.

Muda Tudo: A participação das empresas também é muito importante, certo?

Samuel Barreto: O apoio da iniciativa privada não é somente com recursos. É importante ter o conhecimento de seus impactos, e não só melhorar a gestão de sua água do muro para dentro. É preciso pensar para além dos muros das fábricas, para as bacias hidrográficas, trabalhando em conjunto, em cooperação.

Muda Tudo: E com relação à população? Como o cidadão pode ajudar, além de reduzir o consumo diário de água?

Samuel Barreto: Pressionando os governos e a iniciativa privada para que todos façam a sua parte. A mobilização da sociedade é muito importante para pressionar o governo a ter uma agenda permanente ligada à água e fazer valer os mecanismos indutores de boas práticas, como a Lei das Águas. Mas é fundamental que ela também adote comportamentos sustentáveis no cuidado com a água. Não apenas dentro da sua casa, no uso direto,  mas procurando saber a origem e a forma dos produtos que ela consome. Saber se estão sendo produzidos de maneira adequada. Respeitando as pessoas e o meio ambiente, por exemplo.

Muda Tudo: Por falar em lei, o Brasil tem uma boa legislação relacionada à água?

Samuel Barreto: O Brasil tem uma das legislações mais modernas do mundo. Mas é preciso fazer valer essa legislação, implementar os planos, alocar os recursos devidamente, e claro, atualizar a lei, que já tem 22 anos. A sociedade cobra pouco e precisa fazer a sua parte, como não jogar lixo em qualquer lugar…

Foto: Pixabay

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Muda Tudo: A crise de água é considerada um risco maior do que o terrorismo, de acordo com um relatório feito pelo Fórum Econômico Mundial, no ano passado. Um dado da OCDE, Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, explica bem isso: a demanda por água deve aumentar cerca de 53% no mundo todo até o ano de 2050. Em países como o Brasil, a previsão é de que o aumento seja ainda maior: 79%. E esse aumento de consumo vale também para os outros países dos BRICS (Rússia, India, China e Africa do Sul). Porque esse aumento tão grande?

Samuel Barreto: O aumento populacional gera uma demanda maior. Maior necessidade de alimentos, de energia, de abastecimento de água. Isso pressiona diretamente os sistemas naturais e precisa ser freado. A gente tem usado mais recurso do que a capacidade de repor, é preciso reequilibrar essa balança. Se você recebe R$100 Reais por mês, não dá para gastar R$ 120,00 Reais, vai entrar no cheque especial. E nós sabemos o quanto é difícil pagar esse juros do cheque especial.

A questão não é usar, é usar de forma correta, de forma sustentável. E aí existe um campo enorme de oportunidades para todos os setores.

Foto: Pixabay

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Muda Tudo: A ONU tem uma agenda de 17 objetivos a serem alcançados até 2030, os chamados ODS: Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. A meta número 6 é relacionada à água: assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todas e todos. Isso é possível?

Samuel Barreto: O desafio vai além da ONU, é da humanidade. O que me anima são algumas ações como a da menina Greta, que teve um desencadeamento fantástico, criando um constrangimento para todos nós e eu me incluo nisso. (A sueca Greta Thunberg, ativista ambiental de 16 anos que foi indicada ao Prêmio Nobel da Paz. Greta organizou uma marcha de estudantes que levou 1,5 milhão de pessoas em 100 países a se manifestar em favor do meio ambiente)

De certa forma, a gente não tem conseguido a resposta na velocidade que a gente precisa, mas a gente está muito empenhado nisso. Também não adianta apenas a boa intenção, é preciso ciência, articulação, convergência, ações pragmáticas, investimentos que gerem a transformação necessária para superarmos esses desafios e passarmos a ter um ciclo mundial virtuoso.

Muda Tudo: Samuel, como surgiu o seu interesse pelo mundo da Biologia?

Samuel Barreto: Desde pequeno, no colégio, quando eu tinha uns 10 anos, eu sabia que queria atuar com algo ligado ao meio ambiente e pessoas. Antes de entrar para a universidade eu já participava de diversos movimentos como voluntário, ajudei a criar diversas ONGs, grupos da sociedade civil, e agora estou na TNC e espero continuar nessa linha pelo resto da minha vida.

Muda Tudo: Para terminar, nossa clássica pergunta: para você o que Muda Tudo?

O resgate do olhar para a água como um elemento fundamental para a vida é o que vai mudar tudo.

https://www.tnc.org.br/o-que-fazemos/nossas-iniciativas/coalizao-cidades-pela-agua/