Educação muda tudo. E tudo está mudando na educação. Cibele Racy, diretora da Escola Municipal de Educação Infantil (EMEI) Nelson Mandela, no bairro do Limão, zona norte de São Paulo, é a prova disso.

EMEI Nelson Mandela Foto: Facebook

EMEI Nelson Mandela Foto: Facebook

Há 15 anos, Cibele Racy vem realizando um trabalho intenso, que fez da escola uma referência no cenário da educação brasileira. A Nelson Mandela já recebeu mais de oito prêmios pelo projeto de transformação social que desenvolve contra o racismo e a favor da paz. O trabalho nasceu em resposta à Lei de Diretrizes e Bases de Educação Nacional. A legislação tornou obrigatório, a partir de 2003, o ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira na rede de ensino fundamental e ensino médio.

Cibele Racy, diretora da escola

Existe um belo e poderoso material produzido pela Secretaria Municipal de Educação, mas que, a princípio, era destinado ao ensino fundamental. Recebemos um convite para auxiliar na produção de um material específico para a educação infantil, que desse conta de trabalhar as relações étnico-raciais desde a primeira infância. A parceria deu super certo a tal ponto de incluirmos a Lei 10.639/03 como tema transversal do nosso currículo”, conta Cibele Racy.

Dia Internacional da Educação

Entrevistamos a diretora da escola para marcar o dia mundial da Educação (28 de abril). Nada melhor do que mostrar bons exemplos do que vem dando certo. E, assim, inspirar novas mudanças na nossa sociedade.

A Escola onde Cibele Racy trabalha como diretora se chamava EMEI Guia Lopes. Até que em 2016 passou a se chamar Nelson Mandela, em homenagem ao presidente sul-africano que ganhou o prêmio Nobel da Paz por sua luta contra o racismo, em 1993. Hoje, a escola atende cerca de 2.010 crianças de 4 a 6 anos, em período integral.

A mudança do projeto pedagógico foi aceita pelas famílias das crianças. Mas foi alvo de muitos protestos dos moradores do entorno e o muro da escola chegou a ser pichado com mensagens como “Vamos cuidar de nossas crianças brancas.” A escola não se intimidou. Pelo contrário, realizou um mutirão para repintar o muro e intensificar o trabalho contra a discriminação racial.

Crianças protestam contra racismo e defendem a diversidade na escola Nelson Mandela, em SP Foto: Facebook

Crianças protestam contra o racismo e defendem a diversidade na escola Nelson Mandela, em SP. Foto: Facebook

Um príncipe negro chega para ajudar

Um dos recursos encontrados foi convidar um príncipe africano chamado Azizi Abayomi, um boneco de pano criado para discutir racismo da forma mais lúdica possível.

Muda Tudo: Mas um príncipe não é uma realidade distante dessas crianças?

Cibele: Não, porque a realidade das crianças entre 4 e 6 anos é muito mesclada com a magia, com a fantasia. Isso faz parte do universo infantil. Inovamos quando apresentamos a elas um príncipe diferente do esperado. Ao invés do príncipe loiro de olhos azuis, surge um príncipe negro, de cabelos longos e cacheados. Na hora em que ele chegou foi um choque. Mas isso acabou gerando um caldo extraordinário para o nosso projeto.

O príncipe era casado com a Sofia, uma princesa branca, filha de dois espantalhos que cuidavam da horta da escola. Isso caracterizava a composição da maioria de nossas crianças, com pais ou mães negros casados com brancos. Na verdade, os bonecos formaram uma típica família afro-brasileira.

Por meio de provocações utilizando os bonecos como terceiros educadores, foi possível abordarmos temas diversos. Por exemplo, o respeito à diversidade, a aceitação de si e do outro. Com essas figuras de afeto (os bonecos), foi e é possível elevar a autoestima de todos os envolvidos. Especialmente das crianças negras quando trazemos histórias positivas de seus ancestrais.

A representatividade por meio de histórias, brincadeiras, brinquedos e imagens é fundamental para se garantir a qualidade social da educação pública brasileira.

Bonecos usados na EMEI Nelson Mandela

Bonecos usados na EMEI Nelson Mandela

O sucesso que nos levou a ser considerada uma escola inovadora pelo MEC está no fato de termos transformado um espaço público num território onde todos aprendem e ensinam. Na escola todos são educadores. Todos sabem que para cada pergunta há uma diversidade imensa e quase inesgotável de respostas.

Muda Tudo: E porque a decisão de fazer todas as classes multisseriadas a partir de 2017? Ou seja, juntar as 3 idades em uma mesma classe?

Cibele: Na educação infantil, é comum dividir as crianças por idade. Essa prática diz respeito a uma tendência não muito recente de fragmentar tudo e todos. Nós acreditamos que as especificidades não se encontram catalogadas em uma tabela por idade. Cada ser é um, e isso não tem relação com o tempo de vida que já se viveu.

Muda Tudo: As famílias participam das atividades da escola?

Cibele: Um dos pilares da nossa proposta é a participação das famílias além daquelas situações já tão desgastadas, como as reuniões de pais, conselhos de escola e associação de pais e mestres. Convidamos as famílias mais de uma vez por mês para participar de atividades de rotina junto com suas(seus) filhas(os).

Para fomentar ainda mais a participação das famílias, criamos projetos específicos. Pais fazem palestras aos outros pais e às equipes da escola sobre seus conhecimentos. Em outros momentos, assumem a condução de atividades com a turma de sua (seu) filha(o), por exemplo.

Tratamos de estimular o protagonismo familiar, dando-lhes poder de decisão real sobre o que as crianças devem aprender.

Muda Tudo: Como funciona o projeto “Diretor por um dia?

Cibele: O projeto pretende criar um mecanismo de participação efetiva das crianças e da comunidade no cotidiano escolar, criando uma gestão democrática.

Para as crianças, a escolha do Diretor e Diretora de Escola por um dia é diária.

Para professores, servidores e pais, abrimos inscrições uma vez por mês ou até que seja vencida a pauta de problemas e soluções.

 

Muda Tudo: E como conseguir dinheiro para atender essas demandas?

Cibele: As escolas públicas recebem 3 verbas: 1 federal (PDDE – Programa Dinheiro Direto na Escola), 1 estadual (PTRF – Programa de Transferência Financeira para a Escola) e uma ajuda mensal de 1.000 reais para emergências.

Fazemos um Plano Anual para aplicação desses recursos e reservamos uma quantia para as decisões tomadas pelos Diretores de Escola.

Muda Tudo: A escola não conta com doações privadas?

Cibele: Em dinheiro, nenhuma doação. Não solicitamos nem a contribuição mensal voluntária dos pais como algumas escolas decidem pedir.

Muda Tudo: Para você, qual a grande dificuldade nas escolas públicas do Brasil?

Cibele: As dificuldades existem e não são poucas, mas nenhuma me impediu de construir uma escola de qualidade em que crianças e adultos tenham prazer de aprender juntos e misturados.

O número de alunos por sala de aula é um grande problema nas escolas em geral. Isso afeta negativamente a possibilidade de um atendimento mais individualizado.

Outro grande problema é o fato de o diretor de escola, muitas vezes, não participar ativamente dos processos pedagógicos da escola.

Muda Tudo: Aquele modelo tradicional de ensino de professor ensina, aluno anota. Isso ainda é realidade?

Cibele: Sim. Apesar de já existir um consenso de que esta prática não corresponde mais aos dias de hoje, professores continuam sendo formados por universidades tradicionais nos seus métodos. A desconstrução de práticas não é um processo de resultados a curto prazo.

A EMEI Nelson Mandela se dedica à formação de professores para a educação do século XXI. A  forma adultocêntrica vai dando lugar ao protagonismo infantil.

Redário na EMEI Nelson Mandela: lugar de descontração e encontro Foto: Facebook

Redário na EMEI Nelson Mandela: lugar de descontração e encontro. Foto: Facebook

Muda Tudo: Por exemplo …

Cibele: Os projetos didáticos (aquilo sobre o que nós todos vamos aprender durante um ano letivo) são conduzidos pelas próprias crianças. Ao final de cada ano perguntamos o que elas gostariam de aprender. A criança é o centro. Ela protagoniza ações durante todo o processo de ensino e aprendizagem.

Muda Tudo:  A escola Nelson Mandela trabalha temas não só ligados a relações étnicas raciais. Trabalha também sustentabilidade e consumismo. Como fazer isso com crianças tão pequenas?

Cibele: Não acreditamos que a infância deva ser tratada fora de seu contexto sociocultural. Para exemplificar o que quero dizer, posso descrever uma ação realizada recentemente. Ao trabalharmos o tema sustentabilidade e consumismo, partimos do tema “casa” e todos os significados que esta palavra possa ter. Não é possível ser sustentável se não nos respeitarmos em primeiro lugar. Considerando a barriga da mãe nossa primeira moradia, precisávamos conversar sobre gravidez, fecundação, etc.

Portanto, o projeto sustentabilidade e consumismo, assim como outros que desenvolvemos, não têm como fim único as crianças, mas a constituição de uma comunidade de aprendizagem.

Fico profundamente incomodada quando percebo que algumas escolas subestimam o poder de reflexão e ação de crianças de quatro e cinco anos, colocando-as, somente, diante de conhecimentos que elas já têm. Não é à toa que se pudéssemos fazer um gráfico com os temas dos projetos de educação infantil, mais da metade seria sobre bichinhos.

A nossa horta, por exemplo, é o território em que desencadeamos descobertas incríveis durante o projeto.

Muda Tudo: Você acha que o governo deveria investir mais em escolas de educação infantil?

Cibele: Se você acompanhar as grandes discussões sobre a educação brasileira, perceberá que se concentram nos problemas do ensino fundamental, médio e universitário. Vez ou outra há um revezamento das prioridades. O que me parece urgente é investir na pessoa que entra na rede pública de educação com zero anos e passa boa parte de sua vida nessas escolas. Não acredito que seja possível investir, apenas, em algumas fases do processo de escolarização, como se fosse possível fragmentar o ser humano. Minimizar a importância de investimentos para a primeira infância (0 a 6 anos) é assinar, antecipadamente, o fracasso escolar que muitos poderão experimentar.

União das crianças na EMEI Nelson Mandela Foto: Facebook

União das crianças na EMEI Nelson Mandela Foto: Facebook

Muda Tudo: O que você diria para outras diretoras de escolas?

Cibele: Serei repetitiva, mas é no que acredito de verdade. Desejo que elas saiam de suas salas e descentralizem as atividades burocráticas para sua equipe técnica. Que organizem seus tempos para viver o chão da escola. Que reservem tempos para conviver com as crianças e suas famílias.

Muda Tudo: Cibele, para você, o que muda tudo?

Cibele:  O que muda tudo e a todos, é a existência de pessoas dispostas a fazer a diferença na vida de muitos.

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