Tem gente que nasce em berço esplêndido e fica por lá. Naquela zona de conforto, protegido pela redoma, dentro do carro blindado. E tem gente que arregaça a manga e vai para o front, na luta por um mundo menos desigual. Nina Almeida Braga é uma dessas pessoas que arregaçam a manga. Filha do empresário João Carlos de Almeida Braga, hoje é diretora executiva do Instituto-E, responsável pela parte sócio-ambiental da marca Osklen, criada por Oskar Metsavaht. Entre suas atuais atribuições, Nina também procura disseminar as boas práticas adotadas pela Osklen, que é referência para outras empresas em termos de sustentabilidade.

Nina é socióloga e psicóloga, pós-graduada em Antropologia e Mestre em Saúde da Criança e da Mulher, roteirista e diretora de filmes. Só para listar algumas de suas credenciais… Nina é, acima de tudo, uma mulher de impacto, uma mulher transformadora. Ela Muda Tudo!

“Venho de uma família relativamente abastada do ponto de vista material. Sempre achei que, por conta de ter nascido com algumas questões básicas bem resolvidas, em um país no qual a maioria das pessoas têm de lutar muito para obtê-las, eu tinha de, alguma forma, fazer alguma coisa para transformar essa realidade. Sentia uma espécie de dívida.”

Muda Tudo: Nina, “sempre” significa desde quando?

NAB: Minha família tinha uma quinta relativamente grande no norte de Portugal e, um dia, a minha mãe me pediu para chamar um trabalhador na casa dos funcionários, que era separada da quinta apenas por uma pequena rua daquele vilarejo minúsculo. Eu tinha uns 8, 9 anos, e eu fiquei muito chocada com a diferença das condições em que morávamos. Enquanto a gente vivia com conforto numa casa bem ampla, a casa dos empregados era bem precária e tão fria que todos eles se agrupavam em uma só cama de um quarto, sob o qual amontoavam algumas cabeças de gado, pois os animais exalam calor e aquecem o ambiente.

Aí eu disse: um dia eu vou fazer algo para mudar isso.

Muda Tudo: E o que você fez para mudar?

NAB: Meu pai era muito tradicional, queria uma filha médica. Mas escolhi estudar Sociologia para entender o mundo. E lá fui eu entender o mundo.

Muda Tudo: E você foi trabalhar com o quê?

NAB: Meu primeiro trabalho foi na Comissão de Meio Ambiente da Assembléia Legislativa – isso quando ninguém falava em meio ambiente.

Muda Tudo: E por que uma socióloga trabalharia com meio-ambiente? 

NAB: Eu frequentava Trindade, um paraíso perto de Paraty, e que na época foi tomado por jagunços a serviço de uma multinacional que queria fazer um condomínio fechado e expulsar a população nativa composta por caiçaras. Então eu e mais um grupo de amigos criamos uma ONG para defender a terra e seu povo. E o melhor jeito de fazer isso era trabalhar na Comissão de Meio-Ambiente já que o modo de vida caiçara era essencialmente preservacionista. Foram 9 anos de luta e a gente conseguiu que o condomínio não fosse construído.

O meu comprometimento social vem desde sempre.

Foto: Pixabay Trindade

Foto: Pixabay

Muda Tudo: Da Assembleia você foi para onde?

NAB: De lá eu fui trabalhar na Secretaria de Meio Ambiente de São Paulo, mas não me habituei. Eu sempre fui muito ligada à natureza e decidi voltar para o Rio. Aí eu abri uma produtora com três amigos antropólogos.

Muda Tudo: Mudou o rumo totalmente…

NAB: Sim, eu sempre fui muito inquieta. Na verdade, eu já tinha participado da produção de um documentário sobre Trindade, chamado “Vento Contra”. Eu comecei a ver que o alcance desse tipo de trabalho era muito maior do que papers e qualquer trabalho escrito que eu fazia no mestrado.

Muda Tudo: Você acabou trabalhando com políticas públicas, como foi essa transição?

NAB: A minha primeira filha, a Maria, nasceu com um problema de saúde seríssimo e eu fiquei muito impressionada como o trabalho na UTI neonatal era desumano, mesmo em um dos melhores hospitais particulares do Brasil. As mães só podiam ficar 4 horas por dia na UTI. E era incrível como as enfermeiras ouviam rádio alto! Foi aí que eu falei de novo: vou fazer alguma coisa para mudar isso. Eu tinha uns 32 anos.

Muda Tudo: Você aproveita suas vivências para mudar, bacana isso. E o que você fez para mudar dessa vez, no hospital?

NAB: Eu fui estudar Psicologia para tentar humanizar o atendimento nos hospitais e fazer política pública na Fiocruz, no Ministério da Saúde. Eu passei então a viajar o Brasil inteiro para capacitar centenas de pessoas no método de assistência ao recém-nascido chamado Canguru, que surgiu na Colômbia e tem como base o contato pele/pele. O Brasil inovou muito e transformou o método Canguru em um conjunto de medidas. E eu tive a sorte de fazer parte de uma equipe fora de série que logrou mudar muitas práticas no atendimento ao recém- nascido de baixo peso. Se eu morrer amanhã, acho que fiz alguma coisa relevante nessa área.

 

 

Muda Tudo: E você conseguiu interferir em outras políticas públicas?

NAB: Eu criei o conceito “Maternidade Ampliada”, que mostra como os avós são fundamentais em momentos como o que eu passei, não só para acolher os netos, mas seus próprios filhos, que muitas vezes estão psicologicamente destroçados por terem dado à luz um bebê tão longe do idealizado. Os avós eram proibidos nas UTIs naquela época, o que hoje é flexibilizado. Outra coisa que mudou é o horário de visita dos pais, que não é mais restrito, eles não são mais considerados visitas. Existe ainda outra batalha grande que é fazer com que o suporte aos pais não seja limitado aos parentes de sangue. Minha dissertação de mestrado é justamente sobre a importância de se contar nas UTIs com essas redes de apoio, que muitas vezes são compostas por vizinhos, por exemplo. Mas isso ainda não está tão disseminado.

Muda Tudo: Essa sua vivência de UTI durou quanto tempo?

NAB: Uns 10 anos. Hoje a minha filha vai fazer 29 e está ótima.

Muda Tudo: E da Saúde você voltou para o Meio Ambiente, para o Instituto E?

NAB: Eu estava começando meu doutorado, dando aula na PUC e o Oskar (Metsavaht), meu cunhado, tinha acabado de criar o Instituto-E formalmente e precisava de uma pessoa para torná-lo autônomo.

(nota: O Instituto-E é uma Organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP), que realiza projetos ligados ao desenvolvimento humano sustentável não só no Brasil, mas em outras partes do mundo. Um deles é o projeto de recuperação da vegetação da restinga em praias do Rio.)

Muda Tudo:  E como nasceu o Instituto-E?

NAB: O instituto nasceu do E-brigade, na virada do século. Depois veio o projeto E-Fabrics.

(nota: E-brigade é um movimento de conscientização coletiva ambiental e que transforma conceitos em atitudes. O E-fabrics é um projeto que identifica matérias-primas sustentáveis que possam ser utilizadas pela indústria da moda)

Muda Tudo: Dá um exemplo do que você faz no Instituto?

NAB: A missão do Instituto-E é promover desenvolvimento. Quanto mais trabalho a gente conseguir para as pessoas, melhor.  Eu busco como ajudar essas pessoas a gerar mais renda, ajudar na formalização profissional, a criar MEI … inserir no mercado de trabalho. Outro dia, por exemplo, eu fui ao Jacaré, antigo polo da indústria do moda, onde pessoas hoje trabalham com reciclagem, transformando plástico em malha pet. Tem umas senhoras bordadeiras de Itaperuna, norte fluminense, que trabalham com a gente há anos. A gente faz muitas pontes, derivando também pessoas para outras marcas. A gente trabalha como um hub.

Foto: Facebook

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Muda Tudo: Como você vê o cenário atual no Brasil?

NAB: O cenário macro está muito ruim, mas a gente sente que pode mudar uma ou outra coisa.

Muda Tudo: E vocês do Instituto-E trabalham sempre no Brasil?

NAB: Não. Uma vez eu fui ao Haiti, a convite de uma agência da ONU, que conhecia o projeto E-fabrics. O terremoto que devastou o país tinha acontecido havia dois anos e parecia que tinha sido no dia anterior. Eu fui recolhendo sucata na rua, onde tinha muita gente morando. Um material que à primeira vista não se dá nada por ele. Aí entra o design para fazer a diferença na vida das pessoas.

Muda Tudo: Como assim?

NAB: Eu trouxe uma mala cheia de sucata e uma designer da Osklen criou uma coleção de acessórios tão bela e com um storytelling tão forte que esgotou rapidamente. Ela já voltou 4 vezes ao Haiti para capacitar aqueles artesãos.

Foto: Instituto-E

Foto: Instituto-E

Muda Tudo: Os haitianos continuam produzindo essas peças?

NAB: Agora eles fazem botões. A Osklen é um laboratório, no qual a gente descobre e testa materiais e abre as portas para grupos comunitários.

Foto: Instituto-E

Foto: Instituto-E

Muda Tudo: E onde entra no Instituto-E a sua formação em Psicologia?

NAB: Tem um grande trabalho de escuta, de conversa com essas pessoas que a gente capacita.

Muda Tudo: Como o Instituto é sustentado?

NAB: Até antes da crise que assola nosso país a gente vivia muito de projetos com terceiros. Durante cerca de 4 anos, 80% do nosso orçamento vinha de projetos como os que desenvolvemos com o Ministério do Meio Ambiente da Itália, com a Fundação Banco do Brasil e empresas. Com a crise, essas fontes de recursos diminuíram. Hoje em dia a gente vive principalmente de royalties provenientes da consultoria permanente que prestamos à Osklen.

Muda Tudo: Vocês precisam de voluntários?

NAB: Sim, para algumas ações pontuais, como mutirões de limpeza de praias, replantio da restinga, …

Foto: Instituto-E

Foto: Instituto-E

Muda Tudo: Você poderia não ter feito nada, poderia ter ficado em seu berço esplêndido, mas decidiu contribuir. Como as pessoas podem ajudar?

NAB: O mundo não pode mais esperar, não dá para ficar na zona de conforto, parado. A gente vive num país tão injusto que qualquer coisa faz diferença. Como ajudar? Primeiramente prestando atenção no outro, sendo solidário com quem está ao seu lado. A gente precisa parar e pensar: será que do meu lado não tem nada em que eu possa me engajar, ajudar? Será que eu não tenho umas horas para me dedicar ao outro?

Não falta gente precisando de ajuda, o voluntariado tem todos os méritos do mundo. E eu acho que neste país não tem problema fazer algo assistencial.

Muda Tudo: Fora ajudar no impacto social, ainda tem o impacto ambiental.

NAB: A gente sempre viveu sob a abundância no Brasil, mas isso é coisa do passado. A questão ambiental é urgente e está na hora de a gente mudar nossos hábitos. Evitar desperdício, separar lixo, andar de bicicleta, usar meio de transporte coletivo. Pensar no outro e pensar no mundo. A gente tem que se enxergar como cidadão. Respeitar coisas óbvias que no Brasil não são óbvias, não existe o mínimo de regra de civilidade, de coletividade e isso me choca muito.

O ato de consumir, por exemplo, é um ato de cidadania. Faça escolhas na hora de consumir.

Muda Tudo: E isso inclui a hora de comprar roupas.

NAB: Claro. Em relação à moda, em vez de sair comprando N peças, sem saber a origem, é preciso comprar menos, comprar peças com qualidade sócio-ambiental, peças das quais você sabe a história, sabe a origem. Essa é uma forma de contribuir.

Foto: Instituto-E

Foto: Instituto-E

Muda Tudo: E como tornar a sustentabilidade acessível?

NAB: Inovação é caro e a gente vive em um país que não tem qualquer incentivo a isso. Eu não sou a favor de intervenção estatal, mas um subsídio inicial seria importante.

Muda Tudo: Tem a questão da escala…

NAB: A questão de escala é muito importante. Precisa ter uma pressão pública para colocar nos preços dos produtos as externalidades. Qual o custo real da roupa que polui, que gasta um monte de água para ser feita? Não seria o caso de colocar isso no preço final? Nesse momento isso está muito longe de se tornar uma realidade, mas é algo a ser pensado. Se a gente ficar na inércia, a gente nunca vai conseguir mudar. Um ator, um personagem importante de uma novela, pode plantar sementes que talvez provocaria mudanças.

Muda Tudo: E a mídia pode ajudar…

NAB: A mídia tem um papel muito importante. E a iniciativa privada também. O maior fundo de investimento privado do mundo é o BlackRock, do Larry Fink. Gerencia 7 trilhões de dólares e hoje só investe em projetos com propósito. Nos Estados Unidos, um de cada quatro dólares é investido em projetos com propósito. Na Europa, 47% dos investimentos têm que ter conteúdo sócio-ambiental. Isso vai chegar ao Brasil, é uma tendência.

A geração que nasceu até 1964 vai passar 30 a 40 trilhões de dólares aos millenials, e esses jovens não vão querer usar esse dinheiro em economias poluentes.

Muda Tudo: Para terminar, uma dica para quem faz moda e quer mudar tudo.

NAB: A moda brasileira tem que ter a pegada da sustentabilidade, esse tem que ser o nosso diferencial. A gente tem juta da Amazônia, látex, algodão orgânico, e tem a nossa criatividade, o Brazilian soul

O Brasil é um dos poucos países do Ocidente que têm toda a cadeia têxtil. Isso Muda Tudo.

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